A Peste - Albert Camus
Parte II
A partir de agora, pode-se dizer que a peste era a preocupação de todos nós. Até agora, por mais surpreendido que tenha sido com as coisas estranhas que aconteciam à sua volta, cada cidadão individualmente cuidava dos seus afazeres como sempre, na medida do possível. E sem dúvida continuaria a fazer isso. Mas uma vez que os portões da cidade tinham sido fechados, todos nós percebemos que todos, inclusive o narrador, estavam no mesmo barco, por assim dizer, e cada um teria de se adaptar às novas condições de vida. Assim, por exemplo, um sentimento normalmente tão individual como a dor da separação daqueles que amamos tornou-se repentinamente um sentimento no qual todos partilhavam da mesma forma e - juntamente com o medo - a maior aflição do longo período de exílio que se esperava.
Depois de uma curta ausência, M. Othon, o paterfamilias coruja, reapareceu no restaurante, mas acompanhado apenas pelos dois "caniches adestrados", os seus filhos. Questinado, descobriu-se que a sra. Othon estava em quarentena; ela estava a cuidar da mãe, que sucumbira à peste. "Não gosto nada disto", disse o gerente a Tarrou. "Quarentena ou não, ela está sob suspeita, o que significa que eles também estão."
Tarrou referiu que, se fosse o caso, todos estavam "sob suspeita". Mas o gerente tinha as suas próprias idéias e não deveria ser afastado delas.
"Não, senhor. Você e eu não estamos sob suspeita. Mas eles certamente estão."
Entretanto, M. Othon era imune a essas considerações e não deixaria que a peste mudasse os seus hábitos. Entrou no restaurante com a sua dignidade habitual, sentou-se na frente dos filhos e dirigiu a eles, a intervalos, os mesmos comentários agradáveis e inamovíveis. Apenas o menino parecia um pouco diferente; vestido de preto como a sua irmã, um pouco mais encolhido do que antes, parecia agora uma réplica em miniatura do seu pai. O guarda noturno, que não gostava de M. Othon, dissera sobre ele a Tarrou:
"Esse belo cavalheiro vai desmaiar com as suas roupas. Todo vestido e pronto para partir. Portanto, não precisará de nenhum arranjo."
Como sempre! Ou seja, a nova remessa de soro enviada de Paris parecia menos eficaz que a primeira e a taxa de mortalidade estava aumentando. Ainda só era possível administrar inoculações profiláticas em famílias já atacadas; se seu uso fosse generalizado, quantidades muito grandes da vacina seriam necessárias. A maioria dos bubões recusava-se a rebentar - era como se tivessem sofrido um endurecimento sazonal - e as vítimas sofriam horrivelmente. Nas últimas vinte e quatro horas houve dois casos de uma nova forma da epidemia; a Peste estava a tornar.se pneumónica. Nesse mesmo dia, no decorrer de uma reunião, os médicos muito acussados pressionaram o prefeito - o infeliz homem parecia muito nervoso - a emitir novos regulamentos para impedir o contágio de boca em boca, como acontece na peste pneumônica. O prefeito havia agido como desejava, mas, como sempre, tateava, mais ou menos, no escuro.