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TEXTOS EM PROSA

Textos pessoais em prosa, excertos de livros, comentários a certo tipo de imprensa etc.

TEXTOS EM PROSA

Textos pessoais em prosa, excertos de livros, comentários a certo tipo de imprensa etc.

Arkady Artamenkov

As horas mais significativas da vida de Arcady Alexandrovitch Artamenkov tinham tido lugar dois anos antes, quando a chuva fria, pesada e persistente enchia o milhão de buracos das ruas de Sampetersburgo com uma lama espessa e amarela e o ar sabia mais a corrosão do que era habitual. Atrasado, silencioso, por barbear chapinhara pelas ruas secundárias até ao café designado --- um lugar que abrira recentemente, um pouco acima da Estação da Moscovsky, perto da Casa da Cultura Militia.

Foi Henry Wheyland quem fez o acordo. E era Henry Wheyland quem agora, dois anos mais tarde, andava em círculos, na sala principal do apartamento número 1327, no décimo terceiro andar da torre do bloco número dois, da rua Kamennaya, ilha Vasilevskiy, em Sampetersburgo. Henry  só voltara a encontrar-se com Maria Glover mais uma vez, cerca de seis meses mais tarde, no apartamento dela, no Kanal Griboedova, tal como antes --- ainda que dessa vez com o pretexto de comprovar a eficácia das disposições de ambos, Talvez a admissão de Arcady no Conservatório (comunicação através de Zoya) tivesse fornecido aos dois a validação necessária.

Isabella Glover

Desta vez, pensou Isabella, seria ela a enviar uma mensagem de texto a Molly --- a caminho do Veselka --- só para verificar. Iria comprar chá e o que Molly quisesse, e levaria tudo para casa dela. Um pequeno almoço civilizado antes de trabalhar, algumas mentiras acerca da sua caldeira estar avariada --- e depois um banho (oh Deus, sim, um banho, em vez daquele chuveiro gota a gota) na magnífica banheira de Molly. E, oh, merda, era bom que se lembrasse de telefonar à mãe, do escritório, esta manhã, antes de em Sampetersburgo serem horas de dormir.

Estava na Rua Mercer, não muito longe do Angelika, quando o telefone começou a tocar. A princípio não se apercebeu, devido ao clamor duma sirene de ambulância. Quando, por fim, compreendeu que era o seu telefone que estava a ouvir, teve de esquadrinhar a carteira antes de o conseguir encontar, e quando olhou para o visor havia uma mensagem genérica a indicar um número não identificado. teve de se imobilizar e de encostar o telefone, com força, à orelha, por causa de todo o barulho na rua e de todo um ruído na sua cabeça , e foi assim que a notícia lhe chegou: parada na rua, numa manhã como qualquer outra, falando com o irmão, a dizer-lhe que a mãe morreu. Morreu mesmo.

Gabriel Glover

Sentia-se aliviado por estar novamente entre os russos. Não era nada que tivesse a ver com a sua cabeça, nem sequer com o coração, mas com a sua alma, uma espécie de alinhamento interno ou disposição. Ergeu os olhos para o relógio de parede, por cima das portas castanhas do elevador. Perdera duas horas com os atrasos. Mas o pânico de Londres dera luagar a uma urgência calma, uma pressa cautelosa. Iria encontrar as bichas do visto e do passaporte. Manteria a querela habitual com o taxista --- a não ser que concordasse logo a pagar a tarifa de turista. E deparar-se-ia com o trânsito na Moscovsky... Uma hora e quarto, e deveria lá chegar.

--- Gabe. Olá. olá. Como estás? Não sabia que ias voltar. A Katya diz que és um homem que enlouquceu. --- Desculpa. Yana só estou... Não consigo entrar --- levantou o polegar para apontar para trás de si. Qual é o código? Do portão de segurança. Sabes? Sim, claro --- disse-lhe o número, apercebendo-se do alarme nos olhos dele. A chuva encharcara a calçada, mas, desta vez, ele atravessou a ponte numa corrida uiforme, mantendo sempre os olhos na janela por cima da varanda.

 

 

29 Mai, 2020

As Cruazadas

Entre a primeira expedição, dizimada antes de chegar a Jerusalém, e a última, em que Luís IX, rei de França, morreu de peste mal desembarcou em Cartago, as vitórias obtidas alternavam com as derrotas e o Sagrado Sepulcro acabou por ser perdido. Nada haveria na história do cristianismo de mais anticristão do que os actos cometidos pelos cruzados se depois deles não tivessem surgido os de outros que, em vez da espada, usavam a fogueira e continuado a existir aqueles que esbanjam em seu proveito a riqueza social enquanto os que a realizam morrem de prolongada miséria.

--- Este vento insalubre que vem do rio... --- Ela inspirou com força. --- Os médicos não identificaram a minha doença, agora sei o que é. A Peste Branca. Foi um marinheiro que ma pegou na galera de meu pai quando fugíamos de Margarida de Anjou. Fitei-a horrorizada. A Peste Branca era sempre fatal. Atacava os pulmões e a pouso e pouco ia roubando a vida a uma pessoa. Pior, era uma doença dolorosa, sobretudo no fim, quando a vítima tinha dificuldade em respirar e cuspia sangue e uma mucosidade preta. Com um gesto de cabeça, a Rainha indicou-me uma janela que estava aberta para o jardim.

Quando olhei para trás, na direcção de Londres, as lágrimas toldaram-me a visão. Era isto que Ana receava: deixar Ricardo só e vulnerável, sem ânimo para vencer a luta pela sua vida e pelo seu trono. Virei-me para a frente e esporei o meu palafrém. A nossa viagem para Sheriff Hutton demorou vários dias; quantos não sei, porque não se distinguiram uns dos outros. Mais uma vez atravessámos aldeias, lugarejos e pequenas cidades e vi o mastro dourado de Maio nos campos. Recebemos um acolhimento caloroso dos criados e dos guardas em Sheriff Hutton.

Durante este mês de Outubro, Tudor tomou as rédeas do governo. Chamou o seu conselheiro de confiança, o bispo Morton, que se encontrava no Continente, nomeou-o presidente da Câmara dos pares e mandou regressar a York o arcebispo Rotherham. A peste alastrava em Londres e obrigou Tudor a adiar a sua coroação. O povo considerou que isto era um mau presságio. --- É um sinal de que o reinado será loborioso, dizem,  porque começou com uma doença --- disse-nos a minha mãe.

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21 Mai, 2020

O ENIGMA GOYA

O Retrato do Menino Manuel

Ceán apercebeu-se de que Goya não fazia caso da sua prédica financeira e notou como o pintor tinha ficado concentrado na sua própria obra. Não era a primeira vez que Ceán estava naquela sala aguardando e sabia que o retrato do menino Manuel era um íman para a retina de qualquer um, inclusive para o próprio autor.
--- Esse retrato --- disse-lhe Ceán pondo de lado os incidentes bancários --- é dos mais bem conseguidos que te vi fazer e eu sei muito bem --- acrescentou --- o que tu fazes com a tua arte.
--- Eu também estou satisfeito com ele --- respondeu Goya. --- A infância é o outro lado do tumulto, o lado infantil e inocente. Uma criança, Agustín, é um louco lúcido e bom, que a partir da sua aparente ignorância desafia o mundo tresloudado em que vivemos. A infância é toda uma lição para aprender e não é só pelos olhos do artista.
--- Acho que te entendo --- disse Ceán esboçando um sorriso ---, mas há uma coisa...
--- Diz-me...
--- Porque é que não pintaste nada no fundo quadro?
--- Para dar mais força ao que quero marcar, o olhar. O lugar onde as crianças guardam a verdade.
Não se pode negar que és um mestre --- admirou-se Ceán --- E os gatos?
Ceán referia-se a dois gatos que estavam aos pés do menino no retrato.
--- Parecem gatos? --- Goya desatou a rir. --- Olha que são mochos.
--- São gatos, Francisco... --- e Ceán aproximou-se do quadro para confirmar.
--- Parecem gatos, mas é só isso, aparentam ser, Agustín. Representei um animal misterioso porque tem corpo de gato, isso sim. Mas repara, tem cara de mocho.
--- Que pretendias? --- Ceán estava surpreendido.
--- Unir a independência e a sabedoria, porque uma deve ir de mão dada com a outra.
--- E a pega?
--- Para essa não procures explicações. Pu-la aí para que carregasse a minha assinatura no bico --- disse Goya a rir.

O Retrato de Francisco Cabarrús

--- Francisco, amigo, como tens passado? Como está a boa da Josefa?
--- Gozando de boa saúde, Dom Francisco --- respondeu Goya. --- A mesma que espero para vossa excelência e familia.
--- Mas porquê tanta deferência no tratamento --- respondeu Cabarrús.
--- Esqueceste que a nossa irmandade nos torna iguais perante o Grande Arquitecto do Universo?
--- Pois então, permite-me dizer-te que preciso de abrir as cortinas para que entre a luz, antes que se perca a pouca que nos resta.
--- Francisco --- disse Goya mal colocou os pincéis perto do cavalete --, preciso que te sentes, quero pelo menos meia hora para te poder enquadrar e apanhar-te as expressões.
Goya, entretanto, tinha aberto o cavalete que aguardava arrumado no gabinete e preparava-se para pintar Cabarrús, que não parava de gesticular e de ir de um lado para o outro da sua mesa, sem se sentar em momento algum. Teria de pintá-lo de pé e não sentado, como tinha pensado. Pincéis e paleta começaram a realizar o seu trabalho rapidamente, com precisão, perfeitamente direccionada por essa habilidade que lhe fora dada por Deus para colocar em tela e a cores qualquer coisa que estivesse a seu lado.
Goya terminara com rapidez a silhueta de Cabarrús como ele desejava que o vissem: corpulento e confiante, dono de si e optimista.
Goya não teve mais duvidas. Acabou de executar o rosto de Cabarrús como uma máscara vazia, de olhos redondos e fixos, sem brilho, como se estivessem presentes em vida, mas ausentes dela. Com a ponta do pincel inseriu dois pequenos círculos negros, sem íris. Com rapidez definiu o fundo escuro que ressaltava a rechonchuda figura do banqueiro.

El sí pronuncian y la mano alargan al primero que llega

Sem se aperceber do que estava a fazer enquanto pensava deu conta que já tinha o buril na mão direita, que parecia uma garra com a força e a raiva com que o agarrava de cima da mesa. Quando se quis aperceber viu-se envolvino no que ele chamava «seu capricho» , o segundo que saíra do seu coração e das suas mãos.

Estes desenhos eram fruto das suas mais caras fantasias e dos seus sonhos mais tempestuosos e sombrios. Decidiu que a velha Pascasia presidia à muitidão, apenas desenhada com famintos e andrajosos, que clamava por justiça. Na mão daquele que mais se destacava entre eles, atrás de Pascasia, acrescentou um pau. Desta forma Goya acentuava um protesto mais ameaçador que se conjugava com a raiva que o pintor sentia nesse momento. Goya bebeu de um trago o copo de limonada que a mulher lhe trouxera, poisando-o junto das tintas e concentrou-se de imediato no vestido da dama. Era uma endumentária longa que já tinha rematado na semana anterior, a qual considerou satisfatória para manifestar a pureza da recém-casada, mas agora marcou em cima da cara da noiva uma máscara carnavalesca para esconder a sua ignorância e ocultar a sua formosura. Conseguira com golpes de buril que a sua noiva passa-se a ser uma princesa mascarada que «depois haverá de ser --- pensou --- uma cadela no meio dos seu vassalos», como indicava nesse instante com o traço da sua mão, dando à parte posterior do rosto a aparência de um penteado. --- O povo néscio aplaude estes vínculos --- disse em voz alta, enquanto se afastava dois passos para apreciar o resultado. Mais um um toque, afundando o buril na chapa e estava finalizado o assunto. Agora dispunha-se a rematar as duas figuras que desfilavam atrás da pequena dama e que só estavam esboçadas. As suas caras manifestariam brutalidade e falsidade, como a carantonha dos que se dizem amigos mas não são, e a sua falsidade quis assinalá-la desenhando feições próprias dos símios. Com a figura do marido não quis esforçar-se em demasia, apenas um ligeiro esboço; somente lhe interessava esboçar as rugas e a diferença na idade  para com a jovem desposada. 

O Retrato da Marquesa de la Solana

--- Um retrato magnífico, o da marquesa!
--- Tu és demasiado indulgente comigo, Agustín --- respondeu Goya a Ceán Bermúdes, cedendo-lhe o lugar para contemplar o quadro ao qual acabava de dar as últimas pinceladas.
--- Sabes quanto admiro toda a tua obra, mas este retrato é o melhor a sair das tuas mãos. O pintor ficou a observar o seu trabalho. Na realidade gostava do resultado, estava satisfeito.
--- Estou preocupado porque atrasei-me a acabá-lo --- disse momentos depois e após uma observação repleta de orgulho. --- Devia de o ter levado à marquesa no Outono passado, mas os achaques do costume não mo permitiram.
--- Uma obra assim não tem prazo --- justificou-o o amigo que estava com a cara colada à tela observando em pormenor.
--- Isso não é desculpa, Agustín, e mais ainda quando a marquesa se interessou mais pela minha saúde que eu pelo seu retrato. Por isso me senti ainda mais obrigado.
--- Ela sabe o que é não ter boa saúde --- Ceán referia-se à doença de Maria Rita Berrenechea, a marquesa de la Solana. --- E talvez por isso, de doente para doente, a retrataste com tanta ternura. É o que parece aqui --- e assinalou com o dedo --- que mais que um véu de tule que tu tenhas pintado para ela é uma luz que a coroará como uma auréola.

Retrato de Manuel Godoy

--- Menos cortesias fúteis, mestre, e vamos ao trabalho que se faz tarde. E Manuel Godoy procurou um lugar para se sentar. --- Como inaginas o meu retrato? --- Sentado, Manuel, sentado. Quero que te sentes aqui, neste divan. Godoy foi fazendo o que lhe pedia o pintor. Primeiro sentou-se no sofá e reclinou-se em cima do cotovelo esquerdo, como lhe pediu Goya, e depois pegou nos rascunhos que lhe oferecia o pintor como se os estivesse a estudar. --- Perfeito --- disse Goya ---, manuel.Essa posição é perfeita. --- E o pintor já entranhado no seu papel, continuou às voltas, observando contraluzes e fechando acortinas para direccionar o luz para onde ele queria.  

Retrato da Duquesa de Alba

--- Estou aqui para que me pinteis o retrato!
Tinha sido a corrente de ar --- uma fragrância de nardo e menta --- e não a repentina e estranha petição o que prendera a atenção de Goya, que depois de um aceno de desculpas que ocultou o calafrio que lhe percorreu o corpo, indicou os ouvidos recordando à recém-chegada que era surdo.
--- E vós o sabeis perfeitamente, duquesa --- acrescentou o pintor.
--- Estou-me borrifando para a vossa surdez --- respondeu a duquesa de Alba com toda a sua sinceridade castiça, aproximando-se dele. Do que eu preciso é dum retrato e não saio sem o conseguir, e quero-o pequeno, que me caiba em qualquer lado. Não é muito o que vos peço, apenas um simples esboço a tinta ou a carvão. --- Mas, senhora, nada me agradaria mais que agradar-vos, que vos devo muito, mas supreendeis-me a meio de uma encomenda urgente --- quis-se justificar Goya. --- Estou a pintar a rainha Maria Luísa, a nossa senhora, que Deus a guarde mui...
--- Maria Luísa? Essa puta enfatuada? --- Cortou Cayetana.

Retrato do Duque de Alba

--- Isto é que foi, senhor marquês! --- disse Goya como se nada fosse, atirando-se para trás e olhando para o retrato que saía dos seus pincéis. --- A coisa estava-se mesmo a ver aparecer e, permiti-me a brincadeira, a culpa foi da vossa cabeça irrequieta. Goya estava a retratar nessa manhã José Alvarez de Toledo e Gonzaga, marquês de Villafranca e duque consorte de Alba. A conversa que os ocupava nessa manhã, porque um retrato tem sempre algo da confissão do modelo perante o pintor, era a maneira como, três anos antes, tinha sido decapitado Luís XVI e como depois, em 1795, morrera também o Delfim, como os realistas viam Luís XVII, na sua prisão de Temple, em Paris, com somente dez anos de idade. Evidentemente o duque pensava que todo o assunto era um crime e, apesar de tudo, o pintor deixava bem claro que para ele o tema não lhe parecia assim tão escabroso. --- Sois um radical, mestre --- recriminou o consorte sem qualquer cerimónia. --- Por acaso sois republicano? --- Custa-me aceitar, senhor --- disse Goya evitando uma resposta descaradamente --- , que o filho de um homem possa herdar a coroa do seu pai, como ele fez do seu avô, assim como com todos os Borbón. Por acaso pensais que o meu filho poderá pintar --- e ergueu o braço nu mostrando ao duque o pincel --- somente por dizer à tela que se chama Goya?

Retrato de Pedro Romero

Goya aproximou-se do cavalete onde repousava o retrato de pedro Romero e pôs uma lãmpada à sua esquerda para que a lua amarelada ilumunasse sem que fosse frontalmente. Ainda havia uns pormenores para acabar e o pintor não qyeria que Pedro se prendesse com eles, mas sim no conjunto do quadro. Cayetana aproximou-se também da pintura e o olhar fixou-se no lenço branco que rodeava o pescoço do toureiro. Na realidade não era um lenço mas sim  forro de um capote aberto que depois se recolhia sobre si mesmo, protegendo o corpo do matador mas carregado da presunção que só um artista com Goya podia pressentir nun matador altivo como Pedro. --- Gosto muito, Paco, --- disse Cayetana emocionada. --- É um dos melhores retratos que já saíram das tuas mãos. Goya nada disse. Esperava o veredicto do retratado, que se olhava circunpecto e assombrado como se não se reconhecesse. --- Não me reconheço --- disse Romero com contundência, e perante essa impertinência nem Goya nem a duquesa disseram algo. --- quero dizer --- continuou o toreiro, que não era homem de muitas palavras e compreendeu que se devia explicar face ao que parecia ser uma grossetia da sua parte --- que me retrataste tão bem que me custa reconhecer-me no aspecto que me deste, que sem dúvida é o meu, mas enobrecido, como se não pertencesse à raça dos mortais. --- É que nalgumas coisas é um deus --- brincou Cayetana, satisfeita com a explicação do amigo.

Retrato da Duquesa de Alba

Goya sorria ufano. O que não sabiam os seus amigos era o que o animava. Quando viu alegrar-se a anfitriâ lembrou-se do quadro escondido no outro cavalete: Cayetana de mantilha negra. --- Mostras-me a outra tela? --- pediu a duquesa referindo-se a esse retrato que desconhecia. Goya, muito devagar, aproximou a mão do pano que o cobria e começou a levantá-lo, mas deixou-o cair em seguida. --- Ainda não está terminado --- disse em tom severo.

Retrato de Jovellanos

--- As mãos, senhor, as mãos. Fazei o favor de não as mexer. E razões tinha Goya para se queixar, porque o seu modelo não parava de folhear um dos muitos expedientes que tinha sobre a mesa e parecia que lhe faltava a atenção para posar. Era um memorando que acabava de entregar no gabinete o seu secretário com a recomendação de que o observasse com urgência. --- Desculpai-me, mestre. Sou um péssimo cliente, não é verdade? --- Vós não sois um cliente, Dom Gaspar. Vós sois um amigo e o mais admirado dos que tenho. --- Dom Gaspar, por favor, procurai não vos mexer agora --- insistia Goya. --- Não me importa que possais ler, mas peço-vos que não vos levanteis por um momento.  

El Colosso

--- Vi um colosso, Cayetana --- disse ao retrato enquando a mão desenhava umas costas sintetizadas --- , e olhava-me de lado. «Não, não me dizia nada», parecia estar a responder ao retrato. Goya já estava imerso numa conversa imaginária igual a tantas outras que todos os dias mantinha com a sua amada. --- Acho que sei quem é, meu amor. E a sua mão voltava a trabalhar sobre a figura, desta vez para esconder a sua metade inferior no meio de uns montes grandes e escuros, como se fossem um pedestal do seu meio corpo. --- É que não lhe consigo ver a cara --- parecia estar a justificar-se o pintor perante a duquesa ---, está a virar-me as costas de novo. Lá em baixo, nas faldas do monte, Goya estava agora a desenhar uma multidão que fugia espavorida  entre manadas de gado que fugiam aterrorizodas, também da figura do sinistro gigante. --- Todos lhe têm medo --- esclarecia o pintor à sua silenciosa convidada ---, todos menos estes. --- E indicava-lhe um asno branco e uns touros que permaneciam quietos e alheios à fuga de todos os outros, certamente  por ignorância. Goya continuava a desenhar o esboço das suas persongens. O  colosso continuava sem  dar a cara. --- Não, Cayetana, não sei quem é... --- A imginária voz da duquesa insistia em saber quem era a personagem. Um espasmo fez que Goya, surpreendido, retirasse a mão do desenho. Pouco a pouco, muito devagar, o colosso virou a cabaça para fitar o pintor directamente e Goya reconheceu de imediato a personagem qu eo olhava com desprezo a partis do papel: era Fernando VII.