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TEXTOS EM PROSA

Textos pessoais em prosa, excertos de livros, comentários a certo tipo de imprensa etc.

TEXTOS EM PROSA

Textos pessoais em prosa, excertos de livros, comentários a certo tipo de imprensa etc.



9 - Março (quinta). Há muito tempo que o Rosa me não telefona. É estranho. De vez em quando, para um pouco de companhia dá-me uma telefonadela. De modo que tomei eu hoje a iniciativa. Atende-me a miúda dele que tem uns quinze anos. E diz-me que o pai está internado no hospital. No hospital? Outra vez? Então não tinha saído, já concertado? Tinha. Mas. Então, quando o fui visitar ao hospital, disse-lhe que aproveitasse a experiência e fizesse dela poesia. Respondeu-me que não era capaz. Sabia era falar do sol, do mar, da alegria. E será essa a imagem que vai ficar dele. Mas a sua vida real tem já no passivo muita coisa onde não dá o sol. A arte mente. Mas fala mais verdade que o real. Diz Van Gogh. Ou, com menos profundeza: a poesia diz falsidades parecidas com a verdade, mas pode também proclamar a verdade. Diz Hesíodo. ( a reflectir ). 

Vergílio Ferreira, conta-corrente 2, pag. 181, Livraria Bertrand.



(...) Esta sucinta situação cronológica ajuda-nos no entanto a compreender a posição que António Gedeão veio ocupar, e mesmo nos dilucidará algumas das razões que fizeram, equivocamente, o êxito juntíssimo que a sua poesia obteve. Com efeito, primeiro publicado em 1956, quando quando estavam grupalmente extintos todos os movimentos do 2º quartel do século, e a maior parte dos poetas prosseguia individualmente o seu caminho (ou desconsoladamente persistia nele), ele constituiu uma «novidade» sobre a qual todos se lançaram todos vorazmente. Ali estava um poeta novo e diferente, quando os outros, porque vinham existindo, se pareciam todos mais ou menos consigo próprios, e, nas raivosas oposições surdas, tinham destruído uns aos outros as possibilidades de académica consagração, em que as gerações anteriores , mais instaladas numa vida literária mais diletantesca , haviam sido mais prudentes. E, no esgotamento da virulência  estética do modernismo, em que, sem as vantagens da consagração, o academismo se instalara, era agradabilíssimo e consolador encontrar-se, para aclamar sem compromissos, um poeta que parecia reunir as vantagens de humor insólito do modernismo escolar, com as formulações rítmico-imagéticas tradicionais. Encantados, todos cevaram nele as suas apetências de reaccionarismo estético, reprimidas pela decência de ética modernista que exigia, sem quartel, o maçante esforço de todo o mundo ser diferente de todo o mundo (no que todo o mundo acabou singularmente igual a todo o mundo).(...)

Poesias completas de António Gedeão, (esboço de análise objectiva) por Jorge de Sena, pags . XII e XIII, Portugália.

 
                                                           * 
     E de súbito, mesmo sem cabeça apropriada, tacteei o romance, a ver. Mas foram só umas linhas. É extraordinário como o romance me resiste ou eu o faço resistente, como nada me resiste. Ás vezes lembro-me: atirar-me de cabeça. Mas partia-a com certeza. O livre vagabundear é para escritos de vagabundagem. Cartas, diário, mesmo um pouco o ensaísmo . Romance é de palavra a palavra. Roda livre e é logo de suspeitar.
     Não assim o meu amigo Ramos Rosa. Telefonei-lhe ontem. Como ia, como não ia. Já há tempos que não comunicávamos . Ele foi dizendo. Mal naturalmente. O físico, o psíquico, o mental. E de versos? É o meu ponto de referência para avaliar da lamúria. Pois de versos, uma beleza. Fornadas deles todos os dias. O ano passado publicara dois livros. Este ano outros dois. Era assim. Lá adianto o conselho de que não devia ser tão incontinente. Ele encolhe os ombros no que me responde. Que havia de fazer? Gostava de fazer versos. Gostava de publicar. E contra isso só o túmulo. Fiquei a invejá-lo. Não bem. Eu disse-lhe: a melhor música ouvida dezenas de vezes acaba por chatear. Ele deve ter encolhido os ombros outra vez perante a irremediável fatalidade. Gostava de fazer versos. Gostava de publicar. Disse-lhe que para epígrafe deste meu novo romance ia utilizar uma expressão de um verso dele. Chama-se o romance agora Até ao Fim. Disse o verso.  Ele agradeceu. Lembrava-se mais ou menos do verso. Obrigado, obrigado. E desligámos. Suponho que ia aproveitar o resto do dia para fazer mais versos. Versos bons, com certeza. Mas não tão bons pela abundância em torrente. Mas que fazer? Era assim. Gostava de fazer versos. Gostava de publicar. E quem não quiser que não leia.  O seu fado era esse, as musas enfrascavam-no de poética. E ele tinha que a esvaziar para não morrer de hidropisia. 



21 - Dezembro (terça). Levantar cedo para ir à garagem levar o carro ao médico. Regressar a casa para empacotar prendas em embrulhos. Depois, ida ao correio carregado. Depois enfileirar numa bicha dos registos, em feitio de Pai Natal. Aguentar aí meia hora e ser atendido enfim. Depois mudar de bicha, aguentar aí mais meia hora, porque há que ir receber as massas de uns vales. Depois mudar de bicha outra vez, mas na Caixa Geral de Depósitos. Depois, mudar ainda de bicha, mas na padaria para o sustento familiar. Depois enfileirar não numa bicha mas na sarrabulhada de um quiosque por causa dos jornais. Depois mudar ainda de bicha, mas na cantina para o sustento próprio. Depois regressar a casa , mudar de roupa, acender o radiador e passar, se possível, pelas brasas de uma sesta. Depois alegrar-me no coração, porque o Natal vem aí, cheio de ternura doméstica.

Vergilio Ferreira, conta-corrente 4, pags. 165/6.


                                  *

Ontem fui visitar o Ramos Rosa a casa. Nos fins-de-semana deixam-no sair do hospital. Lá estava, deitado, mas palrador como um pássaro na Primavera. Não era assim. Agente passava-lhe a bola na conversa, ele metia-a logo no bolso. Ficava-se então à espera que a devolvesse, tinha-se de ir lá buscá-la. Achei estranha a coisa, ele explicou: estava a tomar umas pilulazinhas especiais e o resultado era aquele. E sentia-se inspirado. De uma assentada, escrevera não sei quantos poemas que davam já quase para um livro. Extraordinário: Aganipe e Hipocrene já se vendem nas farmácias.

Vergílio Ferreira, conta-corrente 2, pag. 196.

*
O coro das musas tornou o seu lugar de nascimento um santuário e um local de danças especiais. Elas também freqüentavam o Monte Hélicon, onde duas fontes, Aganipe e Hipocrene, tinham a virtude de conferir inspiração poética a quem bebesse de suas águas. Ao lado dessas fontes, as Musas faziam graciosos movimentos de uma dança, com seus pés incansáveis, enquanto exibiam a harmonia de suas vozes cristalinas.



19-Maio (segunda). Ontem, como muitas vezes, fui a casa do Ramos Rosa.(...) E então, para exemplificar a minha «tese», abri um pouco ao acaso o livro do Rosa. O poema que li era obviamente anti-discursivo, e impossível era assim descobrir nele um «discurso». Mas, irreprimivelmente, eu tive necessidade de «entender» o que lá estava, de dizer o que queria dizer. E tentei. Rosa opôs-se ao que eu entendera, mas sobre tudo opôs-se a que eu cifrasse a uma legibilidade o que da sua natureza a recusava: os elementos significativos tinham outra amplitude que não a minha estrita leitura.(...)
Por inteligibilidade da arte devemos querer significar adesão - e daí que eu prefira falar em «compreensão»; como devemos querer significar  uma redutibilidade ao «discurso» (que nunca a esgotará), se tentarmos traduzir a alguém ou a nós próprios o que houvemos sentido e até certo ponto e porquê.
Pergunto por fim ao Rosa como é que poderemos defrontar os seus versos, se não quisermos ficar mudos. E em face do desafio, toma ele próprio o texto para me demonstrar que eu abusara do seu poema. Fico a ouvir-lhe a sobreleitura da leitura que eu fizera. E ou porque eu não conseguia  ouvir lá senão o que já ouvira, ou porque Rosa, já cingido pela minha leitura, não conseguiu inventar outra, o discurso embaraçado que organizou foi justamente um «discurso» - e praticamente não muito distante do meu. Mas, no fundo, é essa a maravilha da arte - o rir-se ela do que nela lemos, mesmo que esse que lê seja o seu próprio autor.(...)

Vergílio Ferreia, conta-corrente 3, pp. 49/50.
15 Mai, 2006

DIREITOS E DEVERES



Por vezes chego a pensar que uma das principais causas da situação deprimente em que o nosso país se encontra prende-se com o facto de, por um lado, os portugueses não fazerem uso de todos os seus direitos, por ignorância ou negligência, e , por outro, não serem, em muitos casos, obrigados a cumprir, correctamente, com os seus deveres, por falta de meios, incompetência ou compadrio...
05 Mai, 2006

ÚLTIMAS CARTEIRAS



      A partir dos meus onze anos, tudo o que aprendi, fi-lo como autodidacta, uma vez que o meu professor da instrução primária me ensinou tudo o que havia para ensinar no que respeita ao didáctico.
      Este professor recebia alunos que iam ficando repetentes nas aulas de outros professores. E na maior parte dos casos ensinava-os com sucesso.
      Apesar disso, havia alguns alunos que ele tinha de mudar para as últimas carteiras da última fila da aula...
      Muitos dos licenciados, que proliferam actualmente nas imensas rádios do nosso país, o professor Benjamim da Silva Coelho (glória à sua alma) teria de os mudar para as últimas carteiras da última fila da sua sala de aulas...