Vergílio Ferreira - conta-corrente 2
9 - Março (quinta). Há muito tempo que o Rosa me não telefona. É estranho. De vez em quando, para um pouco de companhia dá-me uma telefonadela. De modo que tomei eu hoje a iniciativa. Atende-me a miúda dele que tem uns quinze anos. E diz-me que o pai está internado no hospital. No hospital? Outra vez? Então não tinha saído, já concertado? Tinha. Mas. Então, quando o fui visitar ao hospital, disse-lhe que aproveitasse a experiência e fizesse dela poesia. Respondeu-me que não era capaz. Sabia era falar do sol, do mar, da alegria. E será essa a imagem que vai ficar dele. Mas a sua vida real tem já no passivo muita coisa onde não dá o sol. A arte mente. Mas fala mais verdade que o real. Diz Van Gogh. Ou, com menos profundeza: a poesia diz falsidades parecidas com a verdade, mas pode também proclamar a verdade. Diz Hesíodo. ( a reflectir ).
Vergílio Ferreira, conta-corrente 2, pag. 181, Livraria Bertrand.